Projeto Aylluq Q’Anchaynin instala energia solar em 40 casas da comunidade Alto Mishagua

Projeto Aylluq Q’Anchaynin instala energia solar em 40 casas da comunidade Alto Mishagua
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Comunidade agora dispõe de energia elétrica e internet via satélite; ação foi iniciativa de estudantes da UNILA

 

O ano era 2020, e a pandemia de Covid-19 obrigava o mundo a parar. Países fechavam fronteiras, comércios baixavam as portas, e universidades interrompiam suas aulas. E foi em meio a esse caos que Roxana Borda Mamani, à época discente de Desenvolvimento Rural e Segurança Alimentar (DRUSA) na UNILA, identificou um problema que se tornou um ponto de virada em sua vida – e na de mais de 40 famílias.

Após um intercâmbio no México, ela retornou para casa, na comunidade de Alto Mishagua, na Amazônia peruana. Com o isolamento imposto pela pandemia, somado às dificuldades já enfrentadas pela comunidade, concluir a graduação em formato remoto tornou-se um desafio. À época, o pouco acesso à energia elétrica de que os habitantes dispunham era viabilizado por geradores à diesel, “que são caros, poluentes e dependem de transporte fluvial de combustível”, aponta.

 

Foi então que, a partir de conhecimentos que ela já tinha adquirido através do Observatório Latino-Americano da Geopolítica Energética, coordenado pelo professor Lucas Kerr Oliveira, e das conversas com a amiga Joyce Mendez – também integrante do Observatório –, surgiu o projeto Aylluq Q’Anchaynin, que significa “energia da comunidade”, em quéchua.

Após um longo período sem conseguirem se comunicar por conta das limitações da pandemia, as duas se reencontraram em 2021 na Escócia, quando Roxana participava da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP), em Glasgow. Ali mesmo, as duas começaram a esboçar o projeto piloto para a instalação de energia solar na comunidade. “Nós entendemos que a COP era um espaço muito importante para buscar apoio para mudar a realidade da comunidade. E lembro de uma frase que a Roxana disse, que ficou marcada: ‘Eu não vou voltar para a minha comunidade de mãos vazias. Se eu cheguei até aqui, tenho que voltar com algo’”, lembra Joyce.

 

Para Roxana, essa era uma questão fundamental: “No Observatório, já trabalhávamos com o tema da transição energética, com foco em energia renovável, energia limpa. E também já difundíamos vários temas ligados à América Latina. Porque vivemos uma crise aqui na América Latina relacionada aos combustíveis fósseis — pobreza energética, falta de acesso, mobilizações, lutas e enfrentamentos ligados à energia. A gente falava sobre o tema, mas a pergunta era: ‘Como vamos transformar isso em algo concreto?’”, conta.

E então, munidas de coragem e determinação, começaram a abordar pessoas-chave no evento e apresentar a ideia. “Conversamos com muitas pessoas. Recebemos muito feedback. Mas nenhum financiamento. Foram muitos ‘nãos’. Mas teve algo interessante: um dos colegas do Observatório nos apresentou à organização Student Energy”, relata Joyce.

A UNILA, através do Observatório, já tinha um convênio com a Organização, e as estudantes, então, pediram apoio para viabilizar o projeto. “Eles pediram que a gente enviasse o projeto, pois identificaram que nossa ideia poderia se encaixar no programa Guided Projects”, conta. O programa funciona basicamente como uma incubadora de projetos, em que são ofertadas capacitações e mentorias para jovens interessados em liderar projetos de transição energética. “Eles nos responderam dizendo que precisavam conversar com a gente. Porque os Guided Projects que eles tinham até então eram todos no Canadá — nunca tinham apoiado um projeto na América Latina”, ressalta.
Analisando as documentações do projeto, a organização sugeriu que fosse montada uma equipe, pois seria muito trabalho para apenas duas pessoas. E, então, passaram a integrar o time os demais estudantes que também já faziam parte do Observatório: Osman Cesar Granada; Icoana Laís Martins; Vitor Augusto Araújo Rissatti; e Yanderi Josefina Fernandez Hernandez. Um grupo interdisciplinar, mas com um objetivo em comum: levar energia elétrica e internet a uma comunidade indígena – e, de quebra, mostrar que a juventude pode e deve ser levada a sério. “O que nos une é a própria visão da UNILA, essa forma de reunir jovens de diferentes países, homens, mulheres, de diversos gêneros e povos”, destaca Roxana.

Aprendizado

 

Foram muitos meses de estudos e uma grande curva de aprendizado para entender todas as minúcias da instalação, funcionamento e manutenção de um sistema solar. “Aprendemos muitas coisas por meio do Observatório, através da chamada ‘alfabetização energética’. Fizemos trabalhos, pesquisas… não foi apenas um curso ou oficina. O Observatório proporciona educação, pesquisa e também nos leva a olhar para as realidades da América Latina — nossos países, comunidades, regiões. Foi justamente essa diversidade que permitiu que o projeto ganhasse força”, contextualiza Roxana.

Além disso, os estudantes buscaram adquirir conhecimentos de outras fontes. Eles precisavam deixar o projeto robusto o suficiente para ser selecionado nos editais de aporte financeiro, para possibilitar a compra dos equipamentos necessários. “Fizemos uma candidatura formal para o Student Energy e fomos o único projeto da América Latina aprovado. O diferencial do nosso projeto era que, enquanto os demais buscavam instalar painéis solares em edifícios universitários — como foi o caso de todas as equipes do Canadá — nós queríamos eletrificar uma comunidade inteira”, lembra Vitor Rissatti.

Durante o projeto, os estudantes receberam mentorias e capacitação técnica. “Mas enfrentamos uma grande barreira linguística. Somos uma equipe multinacional, falamos várias línguas, mas nem todos dominamos o inglês. E eram muitos documentos, reuniões em inglês, tudo em volume muito alto. Mais ou menos no meio do processo, a Student Energy reconheceu essa dificuldade e tentou ajudar. Eles nos conectaram com a organização Light Up the World, também do Canadá, mas que atua no Peru. E essa organização, sim, tem uma equipe técnica que trabalha com instalações”, detalha.

Mas o projeto tinha mais um desafio: “queríamos eletrificar uma comunidade na floresta amazônica peruana, enquanto a Light Up the World atuava principalmente na região andina, na Serra. Eles não tinham experiência com projetos na Amazônia, e tampouco com a complexidade logística dessa região. Mas quando apresentamos nossa proposta, e dissemos que queríamos levar energia à selva, sentimos que eles pensaram: ‘Está na hora de encararmos esse desafio também’”, conta.

A dificuldade não era só o acesso, como lembra a então mestranda Icoana Laís Martins. “Quando recebemos o treinamento da Student Energy, a maior dificuldade dentro da engenharia de energia era entender como fazer o dimensionamento fotovoltaico para uma comunidade que nem aparecia no mapa.” Foi necessário fazer um trabalho de georreferenciamento, para ter coordenadas reais de latitude e longitude. “Quando conseguimos colocar a comunidade no mapa, tudo ficou mais fácil. Chegamos até a obter uma única foto via Google, que nos ajudou a visualizar melhor o tamanho da comunidade e a pensar o projeto com mais precisão”, relata.

Joyce lembra que uma das maiores dificuldades foi a falta de recursos. “Começamos do zero. Zero reais. Mas com muito conhecimento. Nós nunca recebemos diretamente os recursos — tudo aconteceu por meio dessas duas organizações parceiras”, ressalva. Para Vitor, o lado positivo foi que “com essa estrutura de financiamento via parceiros, conseguimos ter acesso a recursos e a equipamentos sem precisar lidar diretamente com toda a burocracia internacional de transferência de dinheiro”. Mas ainda havia alguns entraves.

A primeira instalação

 

Foi somente em 2023 que o projeto começou a, finalmente, sair do papel. Após muito trabalho, a equipe conseguiu viabilizar a primeira instalação. O sistema foi instalado na escola da comunidade, composto por uma placa solar, uma bateria com autonomia de dois dias, um controlador de carga, um microinversor e o sistema de internet via satélite. “Também há um sistema de resfriamento, para preservar os equipamentos e manter a estabilidade dessa primeira etapa”, relata Icoana.

 

 

Para Vitor Rissatti, este já foi um passo gigante. “O sistema piloto garantiu energia para o centro comunitário e para a antena de internet via satélite. Com isso, a comunidade passou a ter acesso à internet 24 horas por dia. Foi um momento muito marcante, porque percebemos que o impacto não era só energético, mas também de comunicação, de acesso à informação, de contato com o mundo.”

Mas essa história ainda estava longe de acabar. “Quando terminamos essa primeira instalação, o sentimento era de que tínhamos dado o primeiro passo para algo muito maior. Mas também sabíamos que ainda havia muito por fazer, porque a meta era chegar a todas as famílias da comunidade. Nesse ponto, começamos a pensar em onde buscaríamos novos recursos para a segunda etapa”, aponta Joyce.

Mais desafios

 

Novamente, o processo não foi fácil. “Esbarramos em muitas barreiras. Começamos a fazer críticas em eventos: ‘Precisamos de financiamento para jovens, para comunidades indígenas remotas. Se falamos de inclusão climática e financiamento climático, onde está isso na prática?’”, questiona Joyce.

Vitor Rissatti referenda: “Lembro bem disso. Nós participamos de eventos de alto nível, como o da Agência Internacional de Energias Renováveis (IRENA), em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes. Pensamos: ‘Essa é a oportunidade de encontrar financiadores’. O retorno, porém, era sempre: ‘Não financiamos projetos de 40 ou 50 mil dólares, trabalhamos na casa dos milhões’. Foi frustrante, porque percebemos que esses grandes fundos priorizam governos ou bancos de desenvolvimento, sem ligação direta com comunidades”.

Apesar das dificuldades, nesses eventos também surgiam oportunidades, conforme lembra Joyce. “Em um desses grupos de contato, ficamos sabendo de um edital chamado Youth for Climate, que oferecia até 20 mil dólares para projetos juvenis climáticos em várias áreas — energia, água, saneamento, adaptação climática, resiliência, educação, nutrição. Já tínhamos um parceiro técnico, a Light Up the World, e enviamos a proposta. Recebemos a notícia de que fomos pré-selecionados. A segunda fase seria presencial, em Roma”.

O escolhido para representar a equipe foi Osman Cesar Granada, que partiu rumo à Itália com o desafio de fazer um pitch, de três minutos, no Youth for Climate Spark Solution, realizado em Roma em outubro de 2023, pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e o Ministério das Relações Exteriores da Itália.

“O prêmio de 20 mil dólares era essencial para nós. A apresentação seria em inglês — e meu inglês, na época, não era tão bom. Mas aceitei o desafio”, lembra Osman Granada. “Tivemos que preparar todo o pitch, revisar todos os detalhes técnicos e explicar não só a parte de engenharia, mas também o impacto social e ambiental do projeto. Estávamos concorrendo com iniciativas do mundo inteiro, mas acredito que o diferencial foi mostrar que a nossa proposta tinha um componente muito forte de protagonismo juvenil e indígena, além do impacto direto na vida das pessoas”, complementa.

 

“Quando anunciaram os resultados e ouvi que tínhamos vencido, quase chorei. Foi um dos momentos mais felizes da minha vida”, conta o jovem. Para Roxana, “essa conquista foi resultado de ações reais, concretas e verificáveis que o projeto já vinha realizando. Não era algo só de discurso, era trabalho de verdade”.
O último financiamento foi confirmado no começo deste ano e, imediatamente, o grupo começou a se organizar para fazer as instalações que levariam energia às 40 casas da comunidade. O trabalho foi concluído em julho. Nesta etapa, além de instalar o sistema elétrico, a equipe deu capacitações aos jovens da comunidade para que eles pudessem ter autonomia na manutenção dos equipamentos.

 

Para Osman, “ver a comunidade acendendo as luzes pela primeira vez foi incrível: cada casa ganhou iluminação interna e externa, facilitando a mobilidade à noite. Além disso, quando começamos o projeto, a comunidade não tinha água encanada. A eletrificação também impulsionou a busca por isso. Pequenos sonhos se tornaram algo grandioso”. Com a energia elétrica e a internet funcionando, a comunidade terá melhores condições de vida, saúde, educação, acesso e informação e muito mais.

Protagonismo juvenil X preconceito

 

Yanderi Josefina Fernandez Hernandez ressalta que, apesar de bem sucedido, o trabalho não foi fácil. Além das barreiras burocráticas e linguísticas, o grupo enfrentou muita resistência e até preconceito. “Um grande desafio foi a presença de barreiras para jovens, mulheres e integrantes de povos indígenas em eventos. Outro é o idioma. Alguns de nós somos de povos indígenas e a maioria desses eventos acontece em outro idioma, que não dominamos”, ressalta.

Contudo, para Yanderi, apesar de o grupo ser formado por pessoas de diferentes países e áreas de formação, “conseguimos respeitar a cosmovisão e o modo de vida das comunidades indígenas. Não foi só uma intervenção técnica: levamos em conta a justiça climática, a participação das mulheres e o curso técnico oferecido na comunidade. O projeto vai muito além de instalar painéis solares — é sobre transformar vidas”.

 

O desejo do time, agora, é que o projeto não seja apenas uma ação pontual, mas que sirva de exemplo para outros países do mundo. Que é possível, eles já mostraram.

Fotos: Arquivo da equipe

EQUIPE UNILA – PROJETO AYLLUQ Q’ANCHAYNIN

– Icoana Laís Martins – mestra em Energia e Sustentabilidade (UNILA)
– Joyce Mendez – foi estudante de Engenharia de Energia e de Biotecnologia, na UNILA, e concluiu sua graduação em Londres. É conselheira juvenil da ONU para o clima
– Osman Cesar Granada – formado em Engenharia Química (UNILA)
– Roxana Borda Mamani – formada em Desenvolvimento Rural e Segurança Alimentar (DRUSA) – UNILA
– Vitor Augusto Araújo Rissatti – graduado e mestrando em Relações Internacionais (UNILA)
– Yanderi Josefina Fernandez Hernandez – formada em Relações Internacionais e Integração (UNILA)


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